O livro marca um tom cáustico e novo estilo na obra de Machado de Assis, bem como audácia e inovação temática no cenário literário nacional, que o fez receber, à época, resenhas estranhadas. Confessando adotar a "forma livre" de Laurence Sterne em seu Tristram Shandy (1759-67), ou de Xavier de Maistre, o autor, com Memórias Póstumas, rompe com a narração linear e objetivista de autores proeminentes da época como Flaubert e Zola para retratar o Rio de Janeiro e sua época em geral com pessimismo, ironia e indiferença — um dos fatores pelos quais a fez ser amplamente considerada a obra que iniciou o Realismo no Brasil.[1][2][3]
Narrado em primeira pessoa, seu autor é Brás Cubas, um "defunto-autor", isto é, um homem que já morreu e que deseja escrever a sua autobiografia. Nascido numa típica família da elite carioca do século XIX, do túmulo o morto escreve suas memórias póstumas começando com uma "Dedicatória": Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas. Seguido da dedicatória, no outro capítulo, "Ao Leitor", o próprio narrador explica o estilo de seu livro, enquanto o próximo, "Óbito do Autor", começa realmente com a narrativa, explicando seus funerais e em seguida a causa mortis, uma pneumonia contraída enquanto inventava o "emplastro Brás Cubas", panacéia medicamentosa que foi sua última obsessão e que lhe "garantiria a glória entre os homens". No Capítulo VII, "O Delírio", narra o que antecedeu ao óbito.
No Capítulo IX, "Transição", principiam propriamente as memórias. Brás Cubas começa revendo a própria infância de menino rico, mimado e endiabrado: desde cedo ostentava o apelido de "menino diabo" e já dava mostras da índole perversa quebrando a cabeça das escravas quando não era atendido em algum querer ou montando num dos filhos dos escravos de sua casa, o moleque Prudêncio, que fazia de cavalo. Aos dezessete anos, Brás Cubas apaixona-se por Marcela, "amiga de rapazes e de dinheiro",[5] prostituta de luxo, um amor que durou "quinze meses e onze contos de réis",[6] e que quase acabou com a fortuna da família.
A fim de se esquecer dessa decepção amorosa, o protagonista foi enviado a Coimbra, onde se formou em Direito, após alguns anos de boêmia desbravada, "fazendo romantismo prático e liberalismo teórico".[7] Retorna ao Rio de Janeiro por ocasião da morte da mãe. Depois de namorar inconseqüentemente Eugênia, "coxa de nascença",[8] filha de D. Eusébia, amiga pobre da família, o pai planeja induzi-lo na política através do casamento e encaminha o relacionamento do filho com Virgília, filha do Conselheiro Dutra, que apadrinharia o futuro genro. Porém Virgília prefere casar-se com Lobo Neves, também candidato a uma carreira política. Com a morte do pai de Brás Cubas, instaura-se um conflito entre ele e sua irmã, Sabina, casada com Cotrim, por conta da herança.
Perseguindo a celebridade ou procurando uma vida menos tediosa, Brás Cubas torna-se deputado, enquanto Lobo Neves é nomeado presidente de uma província e parte com Virgília para o Norte, porquanto que termina a relação dos amantes. Sabina arranja uma noiva para Brás Cubas, a Nhã-Loló, sobrinha de Cotrim, de 19 anos, mas ela morre de febre amarela e Brás Cubas torna-se definitivamente um solteirão. Tenta ser ministro de estado mas fracassa; funda um jornal de oposição e fracassa. Quincas Borba dá os primeiros sinais de demência. Virgília, já velha e desfigurada em sua beleza, solicita a ele o amparo à indigência de Dona Plácida, que morre em seguida. Morrem também Lobo Neves, Marcela e Quincas Borba. Eugênia é encontrada num cortiço. A última tentativa de glória, portanto, é o "emplasto Brás Cubas", remédio que curaria todas as doenças; ironicamente, numa de suas saídas à rua para cuidar de seu projeto, molha-se na chuva e apanha uma pneumonia, da qual vem a falecer, aos 64 anos. Virgília, acompanhada do filho, vai visitá-lo na cama e, após longo delírio, morre assistido por alguns familiares. Depois de morto, começa a contar, de trás para frente, a história de sua vida e escreve assim as últimas linhas do capítulo derradeiro:
- Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
O livro é permeado por intertextualidade e ironias. O segundo recurso logo nota-se na "Dedicatória" de Brás Cubas ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver. A ironia é vista como uma forma de "revolta pela vida" usada por Machado para fazer rir, quando como por exemplo Brás Cubas escreve: a sabedoria humana não vale um par de botas curtas [...] Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca à personagem que era coxa de nascença, num célebre exemplo de humor negro.[26] O primeiro recurso, por sua vez, refere-se às referências machadianas aos estilos de outros grandes autores do Ocidente: "Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, só podem ser percebidas por leitores familiarizados com as grandes obras da literatura."[27] Brás Cubas, por exemplo, refere-se no início do livro à Xavier de Maistre e depois a obras como a Suma Teológica.[28] Por conta disso os críticos notam que o estilo machadiano é "culto" por "fazer uso da cultura e sua compreensão aprofundada exige cultura da parte do leitor."[29] Para saber mais sobre as intertextualidades no livro, vá à seção Influências literárias abaixo.
Entre as diversas interpretações que se faz do livro, temos a sociológica. Sob esse parâmetro, Memórias Póstumas é um livro sobre seu tempo e costumes. Críticos que analisam características sociais da trama, destaque para Roberto Schwarz e Alfredo Bosi, notam a volubilidade do narrador da elite e analisam uns e outros personagens de acordo com a sua posição social,[31] além de centrarem-se no contexto ideológico do Segundo Império.[32] Contexto, datas e ambientação são informações importantes para esses críticos.[33] Entre as óticas sociológicas destaca-se as análises de Brás Cubas, homem de família abastada que desde a infância era mimado, uma personagem "beneficiária arrogante ainda que também humilhada da situação propiciada pela escravidão e pelas enormes desigualdades sociais."[34] Assim, o livro é visto como uma obra que assume o "ponto de vista da melancolia, da ruína e da morte ante a situação, rindo de quase tudo e ridicularizando também os dramas dessas frações beneficiárias, que, contudo, aparecem como comédia ou ópera-bufa."[34] Seria um beneficiário cínico que, como ele mesmo escreve no capítulo final, não trabalhou, não pagou o pão com o suor do rosto,[35] em alusão à Gênesis: "No suor do teu rosto comerás o teu pão",[36] mostrando que a propriedade herdada era muito importante para as personagens e a época, daí a luta constante entre ele e sua irmã Sabina e o cunhado Cotrim em ficar com o dinheiro do pai recém-morto e também da preocupação da divisão do espólio após a morte do próprio narrador.[37] Schwarz refere-se à obra como um retrato do liberalismo de fachada que convivia com o regime escravocata.[38]
A crítica literária não deixa de analisar o caráter filosófico do romance, com o seu Humanitismo e vê que o sarcasmo de Brás Cubas, diante do cientificismo propiciado por Charles Darwin e que no Brasil de 1880 ainda se "dava por coveiro da filosofia", reabre a interrogação metafísica e a perplexidade radical ante o ser humano.[43] De fato, esta filosofia é uma sátira ao positivismo de Comte, ao cientificismo do século XIX e à teoria de seleção natural.[44] Assim, um dos temas do livro, que concerne essa nova filosofia inventada pelo autor, é o de que o homem é sujeito à natureza e seus caprichos e não "soberano invulnerável da criação."[43] Surge pela primeira vez na prosa machadiana no Capítulo 157 de Memórias, recebendo um adendo no Capítulo 141, para comentar uma briga de cães. A partir disso, as ideias humanitistas acompanham Brás Cubas até o final do livro; este compreende a teoria, ao contrário do Rubião de Quincas Borba, onde a filosofia fictícia recebe maior explicação e destaque. Por outro lado, vasculhando outros temas, críticos psicanalistas têm notado as cenas de nervoso na obra e não separam a relação que elas tem com a própria saúde do autor, que se acredita ter sido epiléptico, embora não gostasse de tornar isso público, o que o teria feito omitir a palavra "epilepsia" de uma das edições ulteriores, mas que deixaria escapar na edição primeira ao descrever o padecimento da personagem Virgília diante da morte de Brás Cubas: Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica..., que fora substituída por: Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa... As interpretações sobre a obra foram sendo adquiridas e apresentadas por críticos diferentes ao longo do tempo; Alfredo Bosi escreveu que nenhuma interpretação sozinha, no entanto, seria suficiente para "compreender a densidade do olhar machadiano".
PERSONAGENS
- Família de Brás Cubas
- Brás Cubas, personagem-protagonista.
- Sabina, irmã de Brás Cubas, casada com Cotrim.
- Cotrim, cunhado de Brás Cubas.
- Casos amorosos de Brás Cubas
- Marcela, prostituta e primeiro caso amoroso de Brás Cubas.
- Eugênia, filha de D. Eusébia, segundo amor do protagonista.
- Virgília, filha do Conselheiro Dutra, o grande amor de Brás Cubas, e amante dele.
- Nhã-Loló (Elália Damascena de Brito), pretendente a esposa de Brás Cubas, porém morre de febre amarela.
- Outros
- Quincas Borba (Joaquim Borba dos Santos), filósofo, teórico do Humanitismo, amigo de infância de Brás Cubas. (Recebe melhor retrato em Quincas Borba, romance seguinte.)
- D. Eusébia, amiga pobre da família Cubas.
- Conselheiro Dutra, homem bem posto no mundo da política, pai de Virgília.
- Lobo Neves, político e marido de Virgília.
- Luís Dutra, primo de Virgília.
- Dona Plácida, beata velha e pobre, empregada de Virgília e que protege os amantes.
- Secundários
- Prudêncio, moleque filho de escravos, servia de brinquedo na infância de Brás Cubas. Aparece ou é citado somente no Capítulo XI, XXV, XLVI e finalmente no LXVIII quando, já crescido e livre, é encontrado por Brás numa praça, batendo num escravo negro que ele comprou.
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